ESPECIAL NATAL | CONTO: Redenção | NUNO NEPOMUCENO

By Vera Carregueira - 23:35



Redenção

um conto por Nuno Nepomuceno

Este documento segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico para a Língua Portuguesa.


O homem contemplou os vitrais. Iluminadas a espasmos pelos clarões, as janelas brilhavam, sublimes, repletas de vida, matizadas por uma profusão de cores vívida e única. Oriundo do exterior, um barulho ensurdecedor ecoou dentro da pequena igreja. E a chuva começou a cair. Ténue e delicada, primeiro. Pesada, depois. Constante, ausente de vento, uma cortina de água persistente que rapidamente se fechou em torno da capela e a inundou até ao limiar da escuridão.
Confortado pela sinfonia lúgubre que se abatia sobre o velho telhado, o padre João compôs a sotaina, abandonou a sacristia, e dirigiu-se ao altar. De rosto jovem e sonhador, benzeu-se e sorriu, comedido, maravilhado pelo que observava. Velado de perto por um tímido coro de velas, um brilho singular a revesti-lo, o corpo de Cristo crucificado resplandecia, simultaneamente triste e belo.
Comovido, o pároco ajoelhou-se e rendeu-se a um momento de introspeção. Fechou os olhos e orou. Pediu não para os familiares ou os demais que dele precisavam, mas para ele. Para que Ele lhe desse forças que lhe permitissem continuar a lutar, levar ao fim a sua missão.
Mais sereno, respirou fundo e levantou-se. Muito havia ainda para fazer. Estava na hora de preparar a igreja para a cerimónia que se aproximava. Uma criança diferente trouxe luz ao mundo numa noite ancestral como aquela. E dentro em breve, famílias inteiras unir-se-iam a ele, para juntos, celebrarem o nascimento de uma vida marcada pela abnegação. Ou assim ele o esperava...
João usou um castiçal e começou a acender as velas. De frente para Jesus, iluminou as maiores, quase da sua altura, e prosseguiu com as restantes, num trabalho contínuo e cada vez mais abrangente. Os candeeiros teriam de aguardar. A paróquia debatia-se com dificuldades. Ele próprio preferia assim, na verdade. Aquele era o seu santuário. E era lindo, a meia-luz, abençoado pela força de uma tempestade.
Confortado pela fé, o clérigo saiu do altar e virou-se para trás. Embalado pelo som da trovoada, apreciou o que restava da escuridão e fechou os olhos. Um relâmpago repentino, radioso, incandescente, iluminou a pequena capela e obrigou-o a ver. Um rosto cheio de cicatrizes fitava-o sem expressão.
– Q... quem está aí? – O jovem sacerdote foi incapaz de esconder o sobressalto.
– Não tenha medo, padre. Não estou aqui para lhe fazer mal – retorquiu uma voz árida, rouca.
João pegou novamente no castiçal e correu até conseguir localizar um interruptor. As lâmpadas despertaram e a igreja foi definitivamente resgatada às trevas. Receoso, o pároco estudou o seu interlocutor. Sentado nos bancos, o homem continuou a observá-lo. Vestia roupas grossas de inverno, deveria ter entre quarenta a cinquenta anos, ostentava várias chagas na face, mas não era isso, aquilo que o assustara. Tinham sido os olhos, de um tom azul-escuro cobalto, quase tão negros como o petróleo, profundos e desprovidos de vida como um poço sem fundo.
– Há quanto tempo é que aí está? – perguntou-lhe.
– Entrei há pouco. Já me encontrava cá dentro quando começou a chover. A porta estava aberta e aproveitei para entrar e ver os vitrais. Posso ir embora, se assim o desejar.
– Não – pediu, aproximando-se. – Esta casa é de todos. A cerimónia começará dentro de uma hora. Gostaria muito que assistisse.
– A cerimónia?
– A missa do galo. – Preocupado em manter uma distância previdente, o padre sentou-se duas filas à frente do intruso. – Hoje é noite de Natal – explicou.
A boca do homem contraiu-se numa linha fina. Parecia refletir, indeciso sobre algo.
– Porque está tão só?
– O sacerdócio assim o obriga – respondeu João, sério.
– Não me referia a isso – retorquiu o homem, atento aos trovões que insistiam em continuar a atacar a igreja. – Estava a falar da missa. Porque é que não está aqui ninguém?
– É cedo. As pessoas ainda estão a terminar o jantar – apressou-se a justificar.
– Não parece muito crente, padre.
– Tenho fé em Deus e isso chega-me.
O homem inspecionou-o brevemente e depois olhou em redor. Tinha uma expressão difícil de decifrar. Não parecia deslumbrado ou sensibilizado pelo significado da capela, como é hábito. Simplesmente estava ali. Como um navegador perdido em alto-mar que encontrara um porto de abrigo.
– O que aconteceu à sua cara?
O homem não respondeu de imediato. Olhou-o primeiro de forma gelada, quase ressentida, e falou, por fim.
– Estive envolvido num acidente há uns tempos. Fui projetado através do vidro da frente.
João assentiu, mas prosseguiu. O confessionário habituara-o ao sofrimento alheio e a experiência, apesar de não ser assim tanta, aconselhava-o a continuar. O diálogo era, muitas vezes, sinónimo de algum conforto.
– Não tem família? Não me parece ser o tipo de homem que esteja sozinho numa noite destas – reparou, notando nas roupas cuidadas que trazia vestidas.
– A minha mulher morreu. Era bancário e estava a trabalhar até tarde há vários dias. Ela foi-me buscar ao emprego. Acabei por adormecer e não vi um cruzamento. Era eu quem ia a conduzir. Recordo-me que insisti para o fazer.
O padre pestanejou, como que abalroado pela revelação. Aquela era a sua primeira e única paróquia. Apesar da juventude, já há muito que aprendera a lidar com situações difíceis. A culpa era sempre a pior de todas.
– Se lhe servir de algum conforto, convido-o a assistir à missa. Preparei uma homilia diferente para hoje à noite. É sobre salvação, redenção.
– Desejo apenas estar aqui um pouco sentado. Decerto que compreenderá.
– É um convite, não uma obrigação. Fará como bem entender – insistiu o pároco.
– Para quem se diz crente, parece demasiado ávido por alguma companhia, padre. Os fiéis têm escasseado ultimamente?
João lutou por ignorar a súbita centelha de cinismo que leu no olhar escuro do homem. Seriam os seus receios assim tão evidentes?
– Está a chover muito. Alguém acabará por vir. Esta freguesia é complicada. Temos muitas famílias carenciadas e, quando assim o é, as pessoas perdem a fé e distanciam-se – defendeu-se de modo rápido, não disfarçando um surto de emoção.
– Há quantos anos é que aqui está?
– Quase cinco.
– Cinco felizes anos?
– Tenho tido os meus altos e baixos – confessou. – Aprendi a contentar-me com pequenas coisas.
– E... – o homem engasgou-se e tossiu, como quem clareia a garganta. Mas foi incapaz de prosseguir, acometido por novo surto bem mais violento. Restos de vida explodiram-lhe para as mãos.
– Está doente? – indagou João, alarmado pela quantidade anormal de sangue que lhe salpicou os dedos.
– Não ligue. É apenas tosse – retorquiu ele, e fechou as mãos sobre a cintura, limpando-as à camisola escura.
– Dirijo um abrigo perto daqui. Mulheres e crianças em situações precárias, sobretudo. É um espaço pequeno, naturalmente cheio, mas há sempre lugar para alguém que deseje ser ajudado.
– Não se preocupe comigo, padre. Estou para lá de qualquer salvação.
O homem calou-se e esboçou um esgar débil. Aparentava estar em grande sofrimento, mormente, interior.
João manteve-se em silêncio, indeciso acerca do que pensar. Seguira o sacerdócio convicto de ser capaz de fazer melhor. Mas a realidade com que se deparou revelou-se inesperadamente dura. A descrença encontrada já há muito que o vinha a corroer por dentro. Não estava preocupado sobre se iria ter muitas ou poucas pessoas na missa do galo. O problema era a consciência antecipada de que, independentemente do número, todas elas o iriam escutar com alguma atenção, acenar a cabeça quando confrontadas com as suas palavras e, logo de seguida, fugirem para casa, para a rua, e fazerem exatamente o contrário daquilo que ele lhes tentara ensinar.
Hipócrita, a sociedade estava lentamente a derrotá-lo. E ele sentia dificuldade em continuar a lutar.
– Fale-me sobre esse abrigo, padre.
Surpreendido, o clérigo fitou-o novamente. O seu olhar não mais o incomodava.
– É uma casa a poucos metros daqui, do outro lado da praça. Encontra-se um pouco degradada, mas limpa, garanto.
– Não estará cheio?
– O espaço é exíguo, admito. Estou a tentar amealhar algum dinheiro. Existe uma casa abandonada mesmo ao lado que poderíamos comprar, mas a diocese cortou-me os fundos. Há outras prioridades, dizem eles – sorriu de modo amargo. – Tenho uma campanha em curso e conto fazer um apelo muito veemente esta noite para tentar obter ajuda. O que custa mais são os bebés, sabe? Vê-los mal instalados, a passar necessidades, e não conseguir dar-lhes melhor. Isso é que é o mais duro. Mas será um prazer recebê-lo entre nós – esclareceu João, agitando-se no banco, pronto a indicar-lhe o caminho. – Não nego guarida a ninguém, mesmo no meio de uma tempestade. Faço questão.
O homem levantou-se de repente e evitou a proximidade física, começando a percorrer o corredor de acesso à porta da frente em passos frágeis, mas decididos.
– Espere, só quero ajudá-lo – pediu o jovem sacerdote, perplexo.
De costas, o homem abrandou e virou-se ligeiramente, o suficiente para que pudesse ser ouvido.
– É um bom homem, padre – disse-lhe, o olhar possuído por um enigmático brilho. – Não perca a ffico e ligou uma telefoniano frigormas rapidamente desistiu da ideia. Aquele enfermo de rosto marcado pelo sofrimento nar obter é.
Desolado, debaixo de uma sequência de clarões mais intensa, João viu-o desaparecer em direção à rua. Ainda se sentiu tentado em ir atrás dele, insistir para que ficasse, mas rapidamente desistiu da ideia. Aquele enfermo de rosto marcado pelo sofrimento não queria ser ajudado. E, quando assim o era, não havia nada que pudesse fazer.
Resignado, o sacerdote regressou à sacristia. Abriu um pequeno frigorífico e ligou um rádio. Era antigo, um presente de uma senhora bondosa a quem confessara um dia gostar de música, e que naquela noite em particular parecia estar ainda mais roufenho.
Acompanhado pela voz de um jornalista, concentrou-se na tarefa em mãos e começou a separar as hóstias. Conseguia ouvir a chuva e a trovoada cada vez mais fortes através das velhas paredes da divisão. Três cálices seriam suficientes. O homem com quem conversara no interior da igreja tinha sido de uma perspicácia acutilante. Poucos ou nenhuns iriam celebrar com ele aquela noite de Natal.
Entretido, uma notícia distante começou gradualmente a prender-lhe a atenção, perdida através da emissão difícil.
«...o assaltante do banco continua fugido...», explicou o repórter. «...crê-se que o homem está armado, ferido, e é considerado extremamente perigoso...». Novo corte. «...testemunhas oculares afirmam que tem a cara cheia de cicatrizes...»
O estrondo colossal de uma porta a ser escancarada com força chegou à sacristia. João sentiu o sangue fugir-lhe das veias e abafou um grito, relacionando o que acabara de ouvir no relato. E a telefonia apagou-se com um estalo, à mercê de um trovão mais violento, que também levou com ele a eletricidade.
Às escuras, indefeso, o padre estarreceu. Pesados, os passos de um homem sem vida ecoaram sobre o chão da igreja. Cresciam para ele, um após o outro, cada vez mais fortes, cada vez mais próximos, numa promessa de morte. O jovem sacerdote vira o assaltante, sabia em que zona se encontrava. E o seu regresso só queria dizer uma coisa: resolvera silenciá-lo até ao resto da eternidade.
Um sibilo de voz sussurrou-lhe ao ouvido.
Decidido a aceitar o seu destino, João fechou os olhos.
Seguido de um pico de energia, o rádio voltou a tocar e a sacristia iluminou-se subitamente. Com ambas as mãos fervorosamente fechadas em torno do cálice das hóstias, o pároco conseguiu abrir outra vez os olhos, aterrado. Estava sozinho na sala, sem qualquer vestígio de outrem.
O som de uma porta sobrepôs-se ao da trovoada e esta pareceu silenciar-se de repente, num estranho momento de acalmia.
A lutar intensamente contra o próprio medo, o padre reuniu coragem e decidiu entrar na igreja. Subiu as escadas com cautela e espreitou. Abandonada, a capela resplandecia em quietude. Os vitrais a brilharem profusamente, alvo dos clarões cada vez mais distantes; a imagem de Cristo sacrificado adorada pelo incipiente coro de velas. Tudo lhe parecia igual, inalterado, imaculado, com uma única exceção.
João sentiu o coração disparar assim que o viu. Meio aberto, manchado de sangue, um grande saco de dinheiro jazia aos pés de Jesus.

SOBRE O AUTOR:

Nuno Nepomuceno nasceu em 1978, nas Caldas da Rainha. É licenciado em Matemática pela Universidade do Algarve e reside na região Oeste.

Em 2012, venceu o Prémio Literário Book.it com O Espião Português, o seu primeiro romance. Em 2015, publicará o segundo volume da série Freelancer. Encontra-se a trabalhar no terceiro e último livro da trilogia, previsto para o início de 2016.

Para mais informações, por favor consultar www.nunonepomuceno.com.

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